Por Renato Vasconcellos
Supondo que a primeira cena do filme apresentou o seu nascimento, pois veja, o nome dela é Maria das Graças. Com toda a sua graça, suspira a vida em seu primeiro fôlego no dia 23 de agosto de 1960, em Belo Horizonte.
É primogênita dos pais Dilma Carmolina da Silveira e Vicente Mariano da Silveira. Maria das Graças cresceu no Bairro Palmeiras, região Oeste da capital mineira. Segundo ela, a sua infância “muito difícil de ser vivida, pois a gente era pobre”.
A necessidade de trabalhar, ainda quando criança, era a realidade com a qual Maria das Graças se confrontava diariamente.
Maria das Graças e sua mãe carregavam sacos de laranjas para venderem nos campos de futebol. A exposição ao sol, o esforço físico, o suor, entre outras adversidades, nunca tiraram o brilho do olhar de Maria das Graças.
A vontade de evoluir e o espírito de liderança já cativaram a sua personalidade e comportamento, o modo de pensar e agir. Ainda jovem, foi morar com os avós, e conseguiu estudar durante dois anos na Escola Universitária, no bairro Universitário.
Maria das Graças era a primogênita de oito irmãos e, por este motivo, ela retornou para a casa dos pais.
O que a fez amadurecer bastante como ser humano, porém, precisou sacrificar o próprio tempo como estudante, e a experiência escolar foi interrompida, pois ela cuidava dos irmãos.
“O meu sonho era estudar. Não tinha como cinco estudarem, as nossas condições financeiras não permitiam. ”
Maria das Graças estudou até a sétima série entre os anos de 1968 e 1974, na Escola Estadual Manuel Casassanta, localizada no bairro Palmeiras.
“Eu adorava as atividades, eu tinha muitos amigos ”. Ela ressalta o nível dos educadores da sua época dizendo que “os professores antigamente davam aula de verdade”.
Maria das Graças demonstra o seu amor e o valor de ser estudante ao mencionar como ela reciclava o próprio material escolar.
“Eu pensava como as pessoas, as meninas na escola tinham coisas boas, cadernos bons. Eu tinha que apagar os meus cadernos com a borracha para usar no ano seguinte ”.
São pequenos gestos que uma vida “simples” proporciona. A busca pelo o básico em condição de sobrevivência requer um olhar mais sensível. A necessidade por recursos transformou a consciência de Maria das Graças.
“Muitas vezes não tínhamos livros, o material escolar, uniformes e até sapatos ”.
Vicente Mariano da Silveira, o pai, era construtor de obras. “Meu pai era um homem muito honesto e trabalhador, cumpria todos os deveres”.
O sonho de Maria das Graças era ser engenheira, ela é ótima para lidar com organização e matemática. Sempre teve o apoio do pai, e conseguiu levar os ensinamentos dele para a vida adulta, sendo que Vicente faleceu em 1992.
“Uma vez o meu pai disse que era justo pagar todos os funcionários mesmo quando chovia e as pessoas não poderiam trabalhar ”.
Maria das Graças é mãe de cinco filhos e separada há quinze anos. Aos dezenove anos, viveu o primeiro amor com Elias dos Santos, que na época tinha quarenta e nove anos, idade “altamente avançada”.
“Eram outros tempos, e normal uma jovem se casar com homens mais velhos ”.
Viveram juntos durante seis anos, conceberam o primeiro filho do casal, batizado de Romero Maicon Silveira Santos, atualmente com 36 anos de idade. Infelizmente, o primeiro marido faleceu em um acidente de automóvel.
Em 1988, casou-se novamente, com Antônio Maria de Brito, com o término do matrimônio em 2005.
“Mas sou amiga do meu ex-marido, ele me ajudou muito ”.
Durante o casamento, ela concebeu três meninas e um menino. Os filhos são: Debora Dark da Silveira, de 28 anos, Luara Mariana de Brito, também com 28 anos, Luana Elizabeth de Brito, com 23, e o mais novo, Davi Ronan de Brito, de 20 anos.
“Quando a minha filha Luana era mais nova, ela queria ser a noivinha da festa junina da escola ”. Infelizmente, Maria das Graças não tinha dinheiro para alugar o vestido. Ela resolveu ir para a rua recolher materiais recicláveis e, desta forma, conseguiu alugar o vestido da filha.
O destino de tudo que ela recolhia era um ferro velho. O sistema de “troca” era falho, alguns catadores recebiam valores reduzidos, causando injustas perdas monetárias. Ao buscar alternativas para as famílias que trabalhavam no local, a administração do ferro velho convidou Maria das Graças para trabalhar no galpão. De manhã, ela recolhia os materiais nas ruas, na parte da tarde, era encarregada de receber os caminhões e efetuava a pesagem certa do material reciclável.
Em uma das transações envolvendo um caminhão com papelão, Maria das Graças já havia fixado o valor de quarenta e cinco centavos o quilograma, o que, segundo ela, “é um valor justo, porém não é generoso”.
O gerente do local queria remunerar vinte centavos o quilograma. Não satisfeito com a situação, ele agrediu Maria das Graças com um empurrão. Maria o enfrentou, segurando uma faca que estava na sua mão enquanto fazia atividades com os jornais.
“Você não tem direito de me agredir, as pessoas são testemunhas ”.
Após o ocorrido, Maria das Graças não prestou queixa contra o agressor. Naquele mesmo dia, ocorreu uma reunião da administração do ferro velho com os mais de cinquenta catadores, que ameaçaram abandonar o empreendimento. Em consenso, todas as partes concordaram em promover Maria das Graças para gerente.
A gestão dela aproximou as pessoas e as famílias queriam prosperar juntas. A partir dessa conexão, no dia 24 de setembro de 2004, a criação da Coopemar foi fundamental.
A cooperativa precisou organizar os aspectos técnicos e burocráticos. Quando a prensa foi conquistada, por meio de uma doação, Maria das Graças percebeu a diferença e a importância do seu papel como líder na comunidade dos catadores. Para formalizar o processo de registro e licenças necessárias, foi realizada uma assembleia ministrada pela ONG Brasil, que oficializou a criação da Coopemar (Cooperativa de Catadores de Materiais Recicláveis de Belo Horizonte), em dezembro de 2004.
Passados dois meses, o proprietário do ferro velho despejou a cooperativa do local. Um dos amigos de Maria das Graças indicou um galpão localizado no anel rodoviário. Maria das Graças assumiu como tesoureira responsável pelo aluguel do local.
“Eu não sabia que eu estava assumindo uma coisa que iria mudar totalmente a minha vida ”.
O dono do novo galpão alugado já fez concessões em algumas situações, pois a renda da cooperativa não cobria o valor do aluguel. Em fóruns municipais de cidadania, realizados pela prefeitura, a Coopemar estava presente, porém, a gestão municipal não demonstrava interesse em apoiar nos projetos sociais.
Os problemas vividos por Maria das Graças frente à cooperativa eram muitos. Em algumas ocasiões, ela trabalhava sem receber, o que prejudicava o relacionamento com Antônio Maria de Brito, na época do segundo casamento.
“Lutei muito, chorei muito, passei muita raiva, já passei fome ”.
A Coopemar ficou fora da coleta seletiva no início do projeto da Prefeitura de Belo Horizonte (PBH), mas em 2004 começou a operar no bairro Buritis. Recebeu o Prêmio IAB (Instituto de Arquitetos do Brasil) durante a gestão do prefeito Fernando Pimentel (PT), em um coquetel, juntamente com os catadores e a presidência da ABB (Associação do Bairro Buritis).
“O prêmio da IAB foi para a nossa gente um reconhecimento do nosso trabalho”.
Em 2006, a cooperativa estava a todo o vapor, recebendo materiais e assistência da prefeitura. Porém, no final de 2008, a enchente na Avenida Teresa Cristina alagou completamente o local, causando muitos prejuízos. Por este motivo, a Coopemar foi realocada pela PBH para a Avenida Solferina Ricci Pace, número 1.250, no Distrito Industrial do Vale do Jatobá.
Apesar das dificuldades, Maria das Graças pretende criar um produto próprio para ser comercializado pela cooperativa. Ela procura capital, leis de incentivo e especialistas que possam ajudar no desenvolvimento do projeto.
Atualmente, a cooperativa encontra-se paralisada por causa da pandemia, e os catadores estão recebendo o auxílio do governo no valor de 600 reais.
Maria das Graças gostaria de obter a casa própria, ela “mora de favor” em uma casa de sessenta metros quadrados. Isso impede a reunião de todos os filhos e netos no mesmo ambiente habitado por ela. O seu quarto não tem janela, mas o coração de Maria das Graças não perde a esperança.
“Meus filhos não têm vergonha de mim ”.
Todos os filhos de Maria das Graças estudam ou já estudaram, Luana, uma das filhas, estuda psicologia na UFMG.
“Eu penso que quando não se tem a oportunidade de estudar, é importante que os filhos tenham ”.
A história de Maria das Graças continua, a superação diária dos obstáculos evidencia a determinação e seu exemplo de vida. Será que essa história irá servir para algum cineasta? Como base para o desenvolvimento de um roteiro? As cenas estão registradas nas mentes dos leitores, “graças” à Maria das Graças.
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