Coluna opinativa escrita por Amanda Alves, repórter do Jornal DaquiBH e moradora da região oeste de Belo Horizonte
Hoje, 8 de maio, comemoramos o Dia do Artista Plástico. Tento decifrar a razão de se estabelecer um dia comemorativo em nome da profissão,visto que a imagem deste profissional é casualmente lida de forma um tanto nebulosa por quem não é íntimo do meio artístico, por assim dizer.
Quem é lido como artista atualmente? Segundo a definição mais objetiva, a do dicionário, o artista é o indivíduo que se dedica às artes, ou faz delas meio de vida: ator, bailarino, cantor, desenhista, escritor, escultor, fotógrafo, gravurista, músico, pintor. Ou ainda: ´pessoa exímia no desempenho de seu ofício; artífice.
No entanto, de acordo com uma leitura coloquial da palavra, encontramos um contraste importante, o seguinte apontamento no mesmo verbete:
Pessoa que sabe gozar a vida.
Indivíduo enganador; esperto, astucioso.
Indivíduo desligado, distraído, pouco afeito às realidades da vida.
Expressão usada como indeterminador de pessoa, muitas vezes com uma carga semântica irônica, indicando esperteza: Apenas o artista aí é que chegou atrasado.
A partir destas leituras, podemos entender que a figura do artista é vista tanto como alguém distinto e admirável, quanto como um profissional dotado de traços de irresponsabilidade e falhas morais intrínsecas.
O artista, aos olhos do senso comum, é um exemplo da ambiguidade, um paradoxo em forma de gente. É elogio e escárnio. Mas porque essas características antagônicas em relação a ele? É algo que impressiona por serem aspectos descritivos opostos e extremos, que dificilmente encontram interseção.
Tenho a impressão de que fora do contexto da arte, não se sabe muito sobre os artistas, e a definição do dicionário revela essa lacuna. Bem como a utilização do termo já datado: “artista plástico”, para nomear o dia eleito para homenagem a esses profissionais.
A expressão “artista plástico” tem origem no conceito de plasticidade, que se refere à habilidade do artista em dar forma e estrutura aos materiais utilizados na produção de suas obras, e também serve para distinguir a arte visual das outras formas de arte.
Em se tratando da arte produzida hoje, muito pautada nos conceitos, nas apropriações e na desmaterialização do objeto artístico, faz muito pouco sentido chamar essa atividade de plástica, pois muitas obras são objetos que não são modificados, nem formalmente e tampouco estruturalmente pelos artistas.
Importante notar que a apropriação e exibição de objetos industrializados, sem nenhuma ação manual do artista para modificá-los, acontece desde 1917, sob a categoria dos “ready made”. A partir daí, podemos ter ideia do quão anacrônico se tornou chamar as artes visuais de “plásticas”.
Há muito o que se desmistificar ainda. Existe, por exemplo, uma noção de que para ser artista é indispensável algum tipo de “dom”. De volta ao dicionário encontramos a definição dessa palavra pretensiosa: qualidade especial ou habilidade inata para fazer algo; aptidão, habilidade, talento.
O assim chamado: “dom” míngua qualquer entusiasmo do aspirante a artista, se você não nasce com o dito cujo, nada há a ser feito a não ser se resignar. Na mesma medida em que é desonesto com quem se esforça anos a fio, estudando e produzindo incessantemente, desenvolvendo pesquisas que agenciam e relacionam múltiplas áreas do conhecimento humano.
Se de outra maneira o dom pode ser traduzido como gosto ou inclinação para determinada área, é fato que eleexiste para todos os profissionais de todas as áreas e não somente a artística, o que significa que o “dom”, de fato, não existe para ninguém.
A arte é uma forma de expressão humana que atravessa o tempo e o espaço. Ela é capaz de nos fazer refletir sobre questões estéticas, históricas, filosóficas e antropológicas profundas que são constituintes do contexto social no qual vivemos. O que não exclui o fato de que é e foi, indiscriminadamente, usada como uma ferramenta de opressão, reproduzindo valores e visões de mundo que excluem determinados grupos sociais.
A colonização européia da América Latina, por exemplo, teve um impacto profundo na produção artística do continente. Durante séculos, a arte institucionalizada, ou seja, aquela reconhecida como a grande “Arte”, estudada e produzida nas academias e escolas, excluiu a totalidade das manifestações artísticas, estéticas e culturais produzidas fora do parâmetro europeu, branco e masculino.
Só muito recentemente, há cerca de 30 anos, esse paradigma começou a se modificar sensivelmente. Principalmente a partir das discussões suscitadas pelo chamado “giro decolonial”, um movimento teórico e político que surgiu nas ciências sociais e humanas a partir da década de 1990.
O movimento propõe uma reflexão crítica sobre a influência do colonialismo e do eurocentrismo no pensamento ocidental, bem como busca alternativas epistêmicas e políticas a partir de perspectivas não-eurocêntricas. Alternativas que, no caso das artes visuais, buscam re-absorver e reabilitar a arte produzida por mulheres, indígenas e pretos no contexto institucional.
A descolonização da arte é um movimento indispensável na desmistificação de paradigmas, muito contaminados pela ideia de que somente a arte chamada clássica, que procura aperfeiçoar as formas da natureza, copiando e lapidando essas visualidades pode ser admirada e cotejada para compor os acervos mais preciosos dos museus e galerias.
Há uma dificuldade em relação ao público, que ainda na infância rompe seus elos com a produção artística, para se desvencilhar da acepção de que somente o realismo, a cópia da realidade pode compor uma obra de arte digna.
Se existe um obstáculo em relação às deformações figurativas e à produção artística abstrata, o leitor pode imaginar o salto interpretativo que devemos fazer para crer que arte tem mais aderência com o pensamento e com a pesquisa e que está ao alcance de qualquer um que se dedique a ela, do que com a habilidade de execução técnica por parte do artista.
Em certa medida essa desmistificação tem que partir também do esforço dos próprios artistas, que atualmente têm se mobilizado para questionar os padrões estéticos impostos pelo colonialismo e para valorizar as suas próprias tradições culturais. Além disso, os museus e instituições de arte têm se inclinado a tornar suas coleções mais inclusivas, incluindo em seus acervos trabalhos de artistas de diferentes origens étnicas e culturais. Muito além do paradigma eurocêntrico
No entanto, é preciso reconhecer que ainda há muito a ser feito. A arte continua a ser um campo dominado por homens brancos, que muitas vezes ignoram as vozes das minorias étnicas e sociais.
E ainda é cercada de preconceitos excludentes, também em relação ao público consumidor e espectador das artes visuais. É preciso continuar a promover a diversidade, criando espaços para que as vozes marginalizadas sejam ouvidas e acolhendo públicos também cada vez mais diversos.
Neste Dia do Artista Plástico, que, espero, se transforme, em breve, no dia do artista visual, devemos celebrar a diversidade da arte e lembrar que a sua função não é apenas embelezar o mundo, mas também questionar as desigualdades e lutar por um futuro mais justo e inclusivo.
Necessário e urgente aproximar os artistas do mundo, para dissolver as disparidades entre a imaginação das pessoas acerca da atividade e a realidade, às vezes desencorajadora, que envolve trabalhar como um profissional da arte. E, sem dúvida, a descolonização da arte participa fundamentalmente desse processo.
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